Ensaio crítico para o catálogo "The Phantom Collection" de Birger Lipinski e Laercio Redondo, que documenta o processo de criação de dois grandes projetos imersivos criados para o Södertälje konsthall, na Suécia: "Opacity (for Édouard Glissant)" e a exposição "The Phantom Collection". Intitulado "We need to talk about silence", o ensaio retraça a colaboração de longa data de Redondo e Lipinski e a sua prática artística que se cruzam arte e a arquitetura, afim de analisar a exposição "The Phantom Collection" que dá título ao catálogo. A publicação inclui também um ensaio da historiadora Cecilia Fajardo-Hil sobre a exposição "Lo más sencillo es lo más difícil de hacer", realizada em 2020 no Pavilhão Mies van der Rohe, em Bareclona.





Fonte > Catálogo da exposição Phantom Collection, 2022




Pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar, al menos no nosotros, los nacidos en Latinoamérica.

Roberto Bolaño,
Putas Asesinas, 2001

               Após mais de uma década de trabalhos consagrados a edifícios icônicos da arquitetura moderna brasileira, como a Casa de Vidro (Blow-up/A casa de vidro, 2008), o edifício Gustavo Capanema (Fachada, 2014) e o Aterro do Flamengo (Desvios, 2015), entre outros, Laercio Redondo voltou recentemente sua atenção aos espaços canônicos do modernismo europeu. No intervalo de apenas dois anos, realizou três grandes projetos no continente: uma intervenção no Pavilhão Barcelona, de Mies Van der Rohe (Lo más sencillo es lo más difícil de hacer, 2020), e duas manifestações no Södertälje Konsthall, sendo uma exposição (The Phantom Collection, 2021) e uma obra perene (Opacity – For Édouard Glissant, 2021), ambas assinadas junto a Birger Lipinski.

              No contexto de uma arte contemporânea resolutamente global, marcada pela valorização (e, por vezes, pela fetichização) de especificidades e pertencimentos locais, tal gesto pode parecer arriscado. De fato, podemos nos perguntar: o que um artista do Sul teria a dizer sobre o modernismo europeu? Aliás, haveria ainda algo a ser dito sobre o tema, tão estudado pelos especialistas do Norte? Mais: no momento de um bem-vindo (e bastante tardio) movimento de descolonização das instituições hegemônicas, não seria a hora de mostrar que o Brasil também foi moderno? Que, antes da debacle política, econômica e social em que se encontra nos dias de hoje, esse país latino-americano já sonhou com o futuro? E mais: que esse projeto teve cores, texturas e contornos diferentes daqueles da Europa?

                Tais questões são legítimas. Mas, para respondê-las com a profundidade necessária, é preciso antes mudar de perspectiva; e essa é precisamente a operação que Redondo nos convida a realizar. Afinal, basta um olhar rápido sobre suas obras pregressas para notar que seu tom não é de mera celebração. Os nomes do modernismo brasileiro que ali comparecem, apesar de protagonistas, não são infalíveis. Eles carregam dúvidas, hesitações e contradições. Além de corresponder aos fatos históricos, tal ambiguidade responde ainda a uma estratégia narrativa definida. Por um lado, trata-se de recuperar suas histórias, para que o mundo saiba quem foram e o que fizeram essas personagens, e para que nós, brasileiros, evitemos a armadilha de uma amnésia cultural autoimposta, que é uma das formas mais elementares de dominação colonial. Por outro, importa preservar a impureza inerente a essas narrativas, sem adaptá-las ao formato dos relatos oficiais — sempre tão coerentes, límpidos e triunfantes —, de modo a fazer do Brasil mais do que um simples adendo exótico a uma história da arte ainda em tudo eurocentrada.

            É esse olhar de equilibrista, que rememora sem jamais comemorar, que Redondo lança agora a obras do modernismo europeu. O artista sugere, assim, que aqueles fantasmas do Sul, que vagam por entre nossos andaimes, edifícios e ruínas, assombrariam também as mais sólidas e rigorosas edificações do Norte.


*


              Tal transposição de contextos, aliás, nada tem de abrupta. Em realidade, foi a partir de incontáveis idas e vindas ao Brasil que o artista, vivendo em Estocolmo desde 1999, realizou suas obras, em grande, com a contribuição de seu companheiro, o designer de móveis e de exposições sueco Birger Lipinski, que assume agora a coautoria dos projetos em Södertälje. Tal mudança no estatuto da colaboração da dupla vem apenas explicitar a dinâmica intercultural – ou melhor, tradutória – que sempre caracterizou suas produções, afastando, assim, de início a possibilidade de categorizá-las como “brasileiras” ou “europeias”. A coautoria ajuda, ainda, a sublinhar a função — absolutamente central — que cumpre o desenho de exposições na materialização de tais investigações artísticas. Ao buscarem juntos, a cada novo projeto, o vocabulário expográfico que melhor responde à singularidade dos contextos arquitetônicos investigados, Lipinski e Redondo borram voluntariamente os limites entre os espaços da arte, da técnica e também da vida.

                O interesse da dupla por arquitetura é diferente daquele de especialistas da área. Em entrevista concedida à curadora Justine Ludwig, Redondo declarou que esta área lhes permitia “reflect upon power and how it is articulated in society through its buildings, constructions, and whatever official meaning (or perhaps lack of it) they are charged with” [1]. Ao atribuir a essas construções um valor essencialmente metonímico, Lipinski e Redondo recuperam e atualizam estratégias de uma geração de artistas que, desde os anos 1960 e 70, vêm reivindicando a dilatação das questões estéticas para além do campo institucional da arte. De fato, contrariamente a obras como pinturas e esculturas, que podem ser facilmente abstraídas de seu contexto de uso e significação originais, edifícios e monumentos permanecem vinculados a seu entorno: a cidade, a comunidade, a sociedade. E, por isso, ficam necessariamente aquém (ou além) do ideal modernista de uma perfeita autonomia do objeto da arte [2].

              Ora, isso vale inclusive para o edifício singular, criado na virada do século 18 para o 19, chamado de museu. Ao isolar determinados objetos do espaço exterior e salvaguardá-los da passagem do tempo, esse equipamento cultural cumpre uma função que não é só material, mas também ritual, narrativa e epistêmica. Nas palavras do teórico da arte francês Hubert Damsich, “the Museum does not only assume a function of conservation, it secretes history” [3]. Por meio de uma cuidadosa seleção e apresentação de seu acervo, diz ele, a instituição conta uma certa história. E, por meio de decisões relativas à circulação por suas salas, corredores e salões, tambémfaz uma certa história, formando o gosto de centenas, milhares ou milhões de visitantes por ano. Ora, isso não é menos verdade para o museu moderno, o qual começa a se desenhar no início do século 20, na esteira do desenvolvimento da nova disciplina do desenho de exposições. Trabalhando o espaço como um verdadeiro “meio” expressivo, uma série de artistas, artesãos e designers de vanguarda logrou reorganizar a lógica de exibição e circulação do museu tradicional, fazendo com que a mesma instituição pudesse contar, então, novas histórias, com novos objetos e protagonistas.

                É a partir de um significativo recuo histórico que Lipinski e Redondo recuperam hoje tais dispositivos expográficos, a fim de identificar, pontuar e questionar tais narrativas, tanto clássicas quanto modernas. Partindo da lógica própria à arte da instalação, que prega uma indistinção entre o objeto de arte e seu espaço circundante, suas exposições mimetizam e problematizam o próprio espaço expositivo, introduzindo curtos-circuitos no discurso esperado (e elaborado) pelas instituições. A estratégia, já latente em obras como Relance, de 2018, que reexaminava o acervo da Pinacoteca de São Paulo a partir da dimensão (pouco interrogada) do olfato [4], tornou-se ainda mais explícita em Lo más sencillo es lo más difícil de hacer, de 2020. Por meio de uma série de obras de pequeno e médio formato, de materiais que dialogavam com o espaço do Pavilhão Barcelona, de Mies Van der Rohe, ora o refletindo, ora se fundindo a ele, Redondo e Lipinski, que aqui assina os displays, reintroduziam sutilmente algumas camadas da complexa história do local, desde a contribuição fundamental de Lilly Reich [5] no projeto original, efêmero, concebido como representação da Alemanha na Exposição Mundial de Barcelona de 1929, até questões políticas de uma Espanha pós-franquista implicadas na construção da réplica em 1986. Ao fazê-lo, Lipinski e Redondo revelavam ao público a verdadeira natureza daquela “nova velha” edificação: trata-se de um museu de si mesmo. Ao mesmo tempo, apontavam para a inesperada sobrevivência do modernismo em nossa época: aquele processo de museologização, que conferia autonomia estética a certos objetos, está agora sendo estendido até mesmo a obras arquitetônicas. Privados de suas funções originais, edifícios vêm se transformando em “obras de arte”, no sentido modernista do termo, a serem apreciadas apenas esteticamente [6].  

               Mas esse processo tem suas fissuras: aquilo que foi omitido, excluído ou sufocado permanece ali presente, precisamente como recalcado. Daí a necessidade de se retornar a esses espaços institucionais, mesmo os mais canônicos. É que, sem interrogar o que se esconde em seu interior, simplesmente não é possível alcançar aquilo que extrapola os seus muros. É o que acontece, ainda, em The Phantom Collection, de 2021, no Södertälje Konsthall. Ali, a dupla apresentou um conjunto de vasos emblemáticos do design moderno sueco, de criadores anônimos e famosos — todos eles, diga-se, passíveis de ser adquiridos hoje em dia em lojas de segunda mão. Assim como em projetos anteriores, também ficou a cargo de um sofisticado dispositivo expográfico a tarefa de marcar a progressiva perda do contexto de tais objetos e sua posterior museologização. Tal metamorfose era experimentada pelo visitante, primeiramente, sob o modo da decepção. Após ser recebido na sala por imagens altamente estetizadas dos objetos, produzidas por um delicado jogo de luz, projeções e sombras sobre tecido, ele se deparava bruscamente com a limitação de sua experiência inicial. No verso dos displays, era possível perceber que, confundidos aos itens originais da primeira metade do século 20, havia também reproduções mais recentes. Fabricados em outros países, possivelmente com mão de obra barata, essas peças guardavam a estética característica que trouxe notoriedade ao design moderno sueco, indo, contudo, na contramão de sua função original, ligada ao desenvolvimento das políticas do Estado de bem-estar social do país [7]. Esse corte radical — mas invisível a quem acredita ser possível separar forma e ideologia — se materializava ao visitante, em seguida, de forma física, por meio da obstrução de seu movimento. Distribuídos pela sala de modo irregular, os displays impediam uma circulação fluida pelo espaço, de modo que, para avançar na exposição, fosse preciso também recuar, desviar, contornar. Assim como sua posição na sala era deliberada, também importava que tais displays tivessem sido fabricados a partir das paredes expositivas “neutras” que a instituição utiliza para organizar as demais exposições. Longe de dar suporte à narrativa museológica, a expografia passava então a produzir interrupções, hiatos, que revelavam o espaço de enunciação da própria instituição, seus pressupostos, suas perspectivas e pontos cegos.

              Tudo se passa, então, como se, a despeito da impressionante elaboração formal de suas instalações, o objetivo de Lipinski e Redondo fosse, menos, expor sua arte (obras produzidas, colecionadas ou apropriadas) e, mais, expor os próprios espaços da arte ao público. Uma inversão análoga de perspectivas já havia se verificado em outra peça, apresentada naquela mesma sala alguns meses antes, também em 2021, intitulada Opacity – For Édouard Glissant. A obra perene (temporariamente recoberta por ocasião de Phantom Collection) consistiu na substituição do piso regular do museu por um desenho de padronagem complexa, inspirado em técnicas de cestaria de povos originários ameríndios. Tal gesto podia ser lido em diferentes camadas. Em primeiro lugar, ele explicitava a lógica intercultural de suas obras, ao transpor para uma instituição de arte contemporânea do Norte uma plástica tradicional do Sul. Em segundo lugar, recuperava a importância de uma visão da arte para além da estética, ao recorrer a uma tradição que enxerga objetos de forma ritual e suas elaboradas tramas como suporte para a enunciação de narrativas cosmológicas. Por fim, situava o público num terreno irregular, complexo, muitas vezes enigmático, fazendo, ainda, homenagem ao filósofo e poeta das Antilhas Édouard Glissant, que apontava para a noção de “opacidade” como condição para a mediação de diferenças culturais. Como disse Redondo em outra ocasião, na obstrução da perfeita visibilidade da instituição, reside a possibilidade de “provide new paths that could create different stories about the past, things that reverberate also in the present” [8].

                Em Opacity, apesar de uma trama complexa, esses caminhos não estão traçados de antemão; ao contrário, eles aparecem apenas sob os passos do próprio público, que é convidado a tomar lugar no interior de uma história que lhe diz respeito: será mesmo na figura de um caminhante passivo que percorro a história da arte? Será mesmo como um ouvinte passivo que tomo parte nela? Afinal, como nos lembra o filósofo espanhol Paul B. Preciado, nós somos o resultado dessas histórias, que ecoam nos espaços pelos quais circulamos: “Architecture is a performative technique: it produces the subject that it claims to shelter”. Nossas identidades, diz ele, ainda, não são obra espontânea da natureza, mas construções sociais coletivas, operadas sobre nossos corpos: “Like architecture, political technologies of gender, sexuality and race work with the very materiality of bodies and space” [9]. Transpondo essa análise para o espaço do museu, importaria, então, apropriar-se de tais “técnicas performativas” arquitetônicas, a fim de criar no presente novas coreografias do passado e, com isso, abrir perspectivas dissidentes para o futuro.



*


                Essa dança recupera necessariamente os passos do modernismo, cujo legado complexo é hoje em dia celebrado e incompreendido na mesma medida. A oportunidade que Lipinski e Redondo oferecem ao público é a de esquivar-se da dicotomia simples. Não há nem que superar o modernismo, assumindo a fatalidade de um “fim da história”, nem buscar restituí-lo, como se tivesse sido uma “idade de ouro”. Mais longe, cabe encarar de frente suas contradições históricas [10], ali mesmo onde elas se manifestam e se escondem hoje: nos museus. Nesse sentido, os esforços dos artistas parecem coincidir com os de uma segunda ou terceira geração da crítica institucional, que vem trabalhando para reformular a linguagem das instituições e, assim, a própria história da arte. Nas palavras da artista estadunidense Renée Green, “creating a basis to recover and interpret subjugated histories is a massive project with which thinkers and artists in different disciplines in different countries have been engaged for decades, and which continues” [11]. Mas, se há algo de inconfundivelmente “brasileiro” na contribuição da dupla a esse projeto coletivo, internacional e descentralizado, não se deve apenas à presença de objetos, edifícios ou personagens representativos desse país latino-americano. Mas, antes, refere-se à consciência aguda, expressa em cada uma de suas obras de forma distinta, do caráter violento da (escritura da) história, que tenta a todo custo escamotear o inacabamento estrutural da própria realidade. De suas obras, desprende-se, portanto, com um misto de melancolia e entusiasmo, a seguinte evidência: de nada adianta tentar reproduzir no Sul um novo panteão de artistas à imagem do Norte. Para trazer à tona nossas histórias caladas, é preciso encontrar outras formas de contá-las.


...

[1] Laercio Redondo, “In conversation”, In Intimacies/Proximidades, The Green Box Kunstedition: Berlin, 2016, p. 30.

[2] Dessa filiação histórica deriva, ainda, diga-se de passagem, a preferência da dupla pelo uso de técnicas e formatos como serigrafia, tecelagem, fotografia ou vídeo, por vezes taxados de “menores” por extrapolarem os limites institucionais da High Art.

[3] Hubert Damisch, L’Amour m’expose. Le projet ‘Moves’, Yves Gevaert, Klincksieck, Paris, 2000-2007, p. 28.

[4] Em Relance, a dupla parte de uma anedota envolvendo Estevão Silva (1844-1891), primeiro pintor afrodescendente a integrar a Academia Imperial de Belas Artes do Rio de Janeiro. A fim de enfatizar o realismo de suas telas, Silva costumava apresentar naturezas-mortas junto de composições de frutas reais, acrescentando, assim, uma nova dimensão à apreensão da arte: o olfato. Ao criar outras correspondências entre obras e odores na Pinacoteca de São Paulo, Lipinski e Redondo convidaram o público a experimentar outras formas de apreensão da arte que vão além da visualidade — dimensão central a diversas teorias da arte moderna.

[5] Como nos lembra a peça sonora que se encontrava no jardim do Pavilhão Barcelona, Lilly Reich (1885-1947) foi uma profissional central no contexto da Alemanha da primeira metade do século XX: designer de moda e de móveis por formação, professora de decoração de interiores na Bauhaus, foi a primeira mulher a chegar ao alto escalão da Deutsche Werkbund, além de ter sido pioneira no campo do desenho de exposições.

[6] Nesse sentido, não é coincidência que essa reconstrução perene, que apaga o sentido e o propósito da obra original e o substitui por uma dimensão unicamente estética e monumental, tenha sido feita a partir de um pequeno conjunto de fotografias em preto e branco (além de alguns esboços da época). É que, assim como o museu, a fotografia executa uma operação dupla, descontextualizando seus objetos (nesse caso, representados). Foi a partir dessa leitura imagética, como fotografias em livros de história que o pavilhão veio a se tornar, nesse meio-tempo, um marco da arquitetura moderna.

[7] Como relata a peça sonora que faz parte da mostra, tais objetos, de uma só vez belos e funcionais, foram peças-chave de uma verdadeira “revolução doméstica” encabeçada no início do século 20 pelo historiador de arte Gregor Paulsson. À frente da Associação Sueca de Desenho Industrial, ele buscou criar na esfera privada – nos lares e mentalidades individuais – uma prefeita equivalência da organização da esfera pública promovida pelas políticas de bem-estar social.

[8] Op. cit., Laercio Redondo, “In conversation”, p. 35.

[9] Paul B. Preciado, “The Architecture of Sex: Three case studies beyond the Panopticon”, In The Funambulist: Politics of Space and Bodies, #19 Limited Edition Supplement, September-October 2019: Paris, p. 2. 

[10] Por exemplo, o fato de que Mies Van der Rohe não ajudou a reverter o processo de apagamento de Lilly Reich, sua antiga colaboradora, a qual foi fundamental não apenas para a criação do Pavilhão Alemão em Barcelona, como também para a salvaguarda do legado do arquiteto, tendo ela escondido dos nazistas a memória, as fotografias e desenhos preparatórios dele, que o fariam passar para a história. Ou, ainda, o fato de que o programa de democratização da bela forma promovido pela Associação Sueca de Desenho Industrial não adotou, em sua própria organização, um processo democrático. De certa perspectiva, ele pode ser visto mesmo como a imposição do gosto de uma elite cultural que se atribuiu sozinha a tarefa de forjar o senso estético de um país inteiro.

[11] Renée Green, “Beyond”, In Institutional Critique and After, ed. John C. Welchman. Zurich: JRP/Ringier, 2006, p. 160.















Três entradas de diário em que tento identificar e descrever um momento de virada em minha produção, refletindo sobre ele. O que primeiro identifico como uma oportunidade para reinventar-me — aprofundando o meu modelo produtivo, conjugando análise acadêmica e experimentação artística — logo se revela como um esgotamento, em que esses dois polos parecem cada vez mais desconectados, desconexos, opostos mesmo. O próprio diário é visto então como uma espécie de "caderno de crise", servindo também como tubo de ensaio, de laboratório, para uma prática cotidiana que parece ter definitivamente saído do eixo.

Fonte > Arquivo torrent da revista.rar




revsta.rar é uma publicação no formato de um arquivo digital compactado, editado por Jandir Jr. e Cás de Mattos. Ela reúne escritos de artistas brasileiros e é distribuída digitalmente no formato compactado .rar e também nas ruas do Rio de Janeiro, impressa em papel sulfite em uma impressora caseira.



A




Fonderie Darling  09.02.20



                Há mais de um ano escrevi aqui: “O que significa esse caderno? Tudo exceto um retorno”. Àquela altura, era impossível prever o quão certo eu estava, ainda sem um entendimento preciso do que consistiria esse “não retorno” à Academia. Apenas hoje, um domingo de excepcional calmaria, consigo retomar este caderno e tentar reconstituir minimamente o que se passou este ano. Ou melhor, o que não se passou. Como estar certo e errado a uma só vez: basta dizer “as coisas estão mudando” e tentar controlar essas mudanças. Tudo, de fato, mudou. Estou atualmente em residência na Fonderie Darling, já quase na metade de meu período de três meses. É uma bolsa generosa, atribuída pelo Conselho das Artes de Montreal, que foi o que se salvou de um semestre quase integralmente dedicado ao envio de candidaturas as mais variadas. De resto, todo aquele tempo investido em formulários e formalidades revelou-se tempo perdido; preparei outros tantos projetos de residências, de exposições e mesmo de um possível doutorado, que terminaram caindo por terra. Tudo em antecipação a uma mudança que sentia se aproximar.

                Era dezembro de 2018 e eu havia recém-terminado de desmontar minha exposição “As Coisas”. Foi um trabalho de fôlego, que consistiu na coleta, identificação e triagem de todos os meus objetos pessoais fora de uso, acumulados arbitrariamente ao longo dos anos. Baseado nos métodos de classificação obsessiva de Georges Perec, organizei cronológica e alfabeticamente os mais de 3.200 itens localizados em minha casa — objetos perdidos em gavetas, armários e caixas — e os apresentei sem censura como uma grande instalação na galeria. Minha intenção era oferecer ao público minha própria vida, materialmente nua, como um “suporte” para um exercício de autoanálise, a partir do que podem nos dizer nossos objetos. Não apenas afetivamente, mas como sujeitos atravessados por marcadores sociais, de diferenças e identidades, como classe, raça, sexo, gênero etc. Exatamente como havia sugerido, aliás, o próprio Perec em um breve texto chamado “Os lugares de um ardil”, incluído na coletânea Pensar/Classificar, de 1985. Ele escreve ali: “Este pânico de perder meus rastros seguiu-se de uma fúria de conservar e classificar. Eu guardava tudo: as cartas com seus envelopes, ingressos de filmes, passagens aéreas, faturas, talões de cheques, prospectos, recibos, catálogos, convocatórias, jornais diários, canetas-marcadoras secas, isqueiros vazios e até mesmo boletos de contas de gás e eletricidade de um apartamento no qual já não vivia fazia mais de seis anos e, às vezes, passava um dia inteiro a triar e a triar, imaginando uma classificação que preencheria cada ano, cada mês, cada dia da minha vida” [meu itálico].

                Ao fim de um ano exaustivo e recompensador, fui atravessado, contudo, por uma intuição estranha: a de que as coisas “estavam por mudar”. Senti que já não seria possível continuar trabalhando como fizera até ali e que, para seguir adiante, seria preciso, como no Gattopardo de Lampedusa, “mudar algo para que tudo continue como está". E, de fato, não tardou muito para que tal pressentimento se confirmasse. De um dia para o outro, ou melhor, de um ano para o outro, todo o meu modo de trabalho foi colocado à prova. E eu, colocado em xeque. Pois, como numa versão barata de alguma tragédia antiga, tudo que fiz para tentar me subtrair à catástrofe que se anunciava terminou, indiretamente, por exacerbar os seus efeitos. Assim, não só a espera por novas oportunidades de fato se mostrou vã (ao contrário de anos passados, não recebi nenhum convite para trabalho), como também a busca ativa por outras formas de produção se revelou danosa (como resultado, deixei de produzir em absoluto). De modo que, retrospectivamente, aquela primeira metade de 2019 poderia ser resumida assim: uma custosa preparação para uma longa espera que não resultaria em nada. Ou, ao menos, não imediatamente.

                Pensei até mesmo que tivesse chegado a hora de retomar os estudos. Após inaugurar um novo caderno, no início de 2019, redigi um primeiro projeto de doutorado. Levou o título de “O mito e a máquina” e foi uma tentativa de condensar em quinze páginas as interrogações que levantei ao longo dos anos acerca da história, das razões e dos usos da ideia de uma mitologia moderna. Fazê-lo era a sequência lógica, natural, daquilo que me propusera apenas algumas semanas antes: ir até o fim do assunto, ou até o início de uma coisa nova. No entanto, bastou um único encontro com B. H. (em Paris, em um desvio de rota que teve seu custo em uma viagem em família) para que tudo fosse por água abaixo. Passamos quatro horas em um café — ele atacando, eu defendendo —, até que eu lentamente começasse a perceber algo que se insinuava no intervalo entre as nossas palavras: no fundo, eu ainda estava pensando esse “não retorno” aos estudos como... um retorno. Ou ainda: como uma fuga da arte, diante da recusa em transformar efetivamente minha forma de produzir. Em vez de encontrar outras maneiras, outros caminhos, outras estratégias, eu estava jogando um “tudo ou nada” contra mim mesmo. Ou continuaria a produzir no mesmo ritmo, escala e intensidade que antes, ou regressaria à academia; inversamente, ou estudaria ali exatamente aquilo que desejava (e da forma que desejava) ou, então, nada feito.

                Infelizmente, tal lucidez não me veio naquele café, razão pela qual minha iniciativa seguinte foi realizar exatamente o que me havia sido sugerido por B. H., com vistas a um próximo encontro dali a alguns meses. Ainda focado na pesquisa teórica, reduzi dramaticamente meu escopo e refiz o projeto do zero. O novo esforço resultou em um projeto chamado “Stranger than fiction: o Surrealismo como forma de documentário”, de uma dezena de páginas. Este (relido agora mesmo) flui bastante bem, embora possua mais um tom de artigo do que propriamente de projeto. Junto à redução do escopo, operei uma inversão metodológica: em vez de falar de modo mais geral, de como ressurge a noção de mitologia na virada do século 19 para o 20, comecei olhando para uma de suas instâncias, no campo da literatura: a saber, o modo como texto e imagem interagem nos livros do primeiro Surrealismo francês. Notadamente em Nadja, de André Breton, em O camponês de Paris, de Louis Aragon, e, um pouco mais tarde, em A idade viril, de Michel Leiris. Assim, postulando um uso “fotográfico” da própria escrita surrealista, poderia chegar, ao fim, à hipótese da redescoberta da mitologia como um discurso do real, estruturalmente diferente, portanto, da imaginação ficcional. Escrevi ali: “Uma tal mitologia moderna se caracterizaria então por uma lógica ‘documentária’, que busca recolocar em contexto tudo aquilo que foi antes isolado pela fotografia, a atribuir uma legenda a tudo aquilo que, tendo sido retirado de contexto, deixou de fazer sentido”. Em outro lugar do texto, falo ainda da forma da experiência e da escrita do cotidiano surrealista como a “intuição de uma ciência do particular”.

                Ainda que bem-intencionado, esse novo projeto — escrito às vésperas de minha partida para uma outra residência, em Como — foi ainda menos longe que o primeiro. Isso, mesmo tendo tomado a precaução, desta vez, de entrar em contato com outros possíveis orientadores. Não consegui localizar B. H., que, como da outra vez, desapareceu por dias a fio, e meu encontro com J. L. foi pífio, para dizer o mínimo: após me dizer que já não podia mais aceitar orientandos, levantou-se “esquecendo” meu projeto sobre a mesa do café. Teve a gentileza de, na sequência, me pôr em contato com F. P., mas este jamais retornou o e-mail. Não insisti. Nem mesmo no envio do projeto a E. A., que conheci por acaso na nova residência. É que algo ali, naqueles dias, entre aquelas pessoas, operou mais do que as negativas anteriores e terminou de me convencer de que eu estava errado. E que seguiria errando, mesmo que fizesse tudo certo — isto é, ainda que conseguisse fazer bons projetos, bons artigos, boas palestras, ainda que encontrasse um programa de doutorado e seguisse até o fim, por anos a fio, sem olhar para trás. Porque o fantasma da academia, para mim, é justamente esse: não tanto de falhar, mas de lograr. E, no caminho, de ser engolido pelo vórtice da pesquisa teórica e deixar de lado a minha produção de arte.
 
                Por isso, não deveria estar buscando transformar a minha forma de produção (digamos, ao voltar a realizar pesquisa formal), mas, sim, encontrar novas (e melhores) condições de realizá-la. Pois foi fundamentalmente isto que encontrei ali: contexto. Os mesmos trabalhos, recebidos antes de maneira mais ou menos morna, encontraram subitamente um lugar, um eco, uma câmara de ressonância. E foi com esse compromisso renovado comigo mesmo que voltei para casa. Passei, em seguida, todo o segundo semestre de 2019 movido por um furor produtivo que teve por objetivo terminar uma série de coisas — e, pela primeira vez em muitos anos, não necessariamente para determinada data, edital ou evento, mas pelo simples compromisso de levá-las a cabo, isto é, de levá-las adiante até que encontrem um contexto que as faça significar. Agora, minhas coisas estão todas guardadas em um storage em São Paulo, estou sem casa ou escritório, a não ser por este ateliê na outra ponta da América, por mais um mês e meio. Eu tinha razão, tudo ia mudar. Apenas, eu achei que pudesse me preparar, me antecipar, ou então fugir, ao passo que a única coisa que me cabia de fato era respirar fundo, fechar os olhos e mergulhar.



B




Biblioteca Mário de Andrade  21.01.19



                Esta é minha primeira visita à Biblioteca em algum tempo; vim algumas vezes ao longo do ano passado, para preparar aulas, fazer projetos para editais, escrever um texto ou outro. Mas é a primeira vez que venho com a ideia de voltar regularmente, de voltar a ler e estudar com uma regularidade que não está pautada nas ocasiões de produzir isto ou aquilo, mas em um desejo de fazer algo que tem a ver com a própria biblioteca — tomada não como um meio, mas como um fim em si mesma. Algo que tem a ver com o próprio suporte dessa atividade: o caderno.

                Se é bem verdade que segui pesquisando todos esses anos longe da academia, segundo uma lógica que talvez pudesse ser chamada de rigorosamente selvagem, é também certo que deixei de lado a escrita. Não tanto como produto, pois tudo o que fiz nos últimos anos esteve baseado na escrita (e na leitura); mas como prática, isto é, como modo de registrar, criar, manipular ideias. Meu último caderno data de 2014, e mesmo este já era uma tentativa de retomar algo interrompido em 2011, quando deixei de frequentar (diariamente) bibliotecas. Há apenas duas entradas em 12 e 13, que se leem exatamente nessa chave, de se retomar algo perdido: um jeito de pensar, de parar, de se concentrar. Estes são os anos de metamorfose, em que tudo o que era angústia difusa começou a tomar forma, a sair do caderno. Essa saída foi também da academia, e é fora dela que as minhas obras e as aulas começaram. Estão ligados para mim, portanto: Academia, Biblioteca, Caderno. Penso agora que esse último elemento tenha se apresentado como um instrumento de contrapeso ao primeiro, a fim de administrar a insatisfação que me acompanhou ao longo dos meus anos de mestrado, primeiro na filosofia e, depois, na história da arte. Pois naqueles cadernos não estavam (não estão) simplesmente notas de leituras ou de aulas, mas precisamente o que excedia esse quadro mais estrito. Eles preparavam, desde o início, sem que eu pudesse imaginar, é claro, minha saída da biblioteca.

                É paradoxal que o momento em que decido voltar a escrever seja também o que começo a preparar — com todos os cuidados possíveis — uma volta à academia? Este novo caderno talvez responda ao desafio: como voltar à pesquisa formal sem deixar de lado o que construí sozinho nestes últimos anos? Pois não tenho nenhuma nostalgia do formalismo “tripartite” acadêmico ou de qualquer outra formalidade para-textual. Foi também por considera-la uma fôrma fechada demais que pensei em buscar refúgio na arte. Mas não parava por aí, me incomodava também, e sobretudo, seu caráter endógeno: isto é, tudo ali parecia ser feito para ser consumido apenas pelos membros da própria comunidade acadêmica (embora raramente o fosse); nunca pelos “de fora”. Tudo o que pretendi fazer depois, seja em minhas aulas, seja em minhas obras, foi o inverso disso: permitir o acesso, idealmente a qualquer pessoa, a objetos teóricos densos; aplicar aos objetos concretos, à minha experiência do cotidiano, esse mesmo fôlego analítico que a academia vota, via de regra, unicamente aos conceitos; encontrar, enfim, esse ponto de contato entre teoria e prática — ou, ainda mais longe, entre vida e obra.
 
                O que significa então esse caderno? Tudo exceto um retorno. É a tentativa de sistematizar a pesquisa informal que venho fazendo (desde meados de 2009) sobre a mitologia como forma discursiva, de aprofundar a intuição documentária que alimenta minha produção. É esse equilíbrio, ou entrecruzamento de palavra e coisa — por meio da obra —, que se trata de alcançar. Há apenas alguns dias, recusei o convite, em realidade irrecusável, de K. C. para fazer um doutorado na Universidade da Flórida, por achar que não seria ainda o programa certo, o lugar certo, para o tipo de trabalho que quero fazer. Falei também há pouco ao telefone, e por mais de uma hora, com B. H. em Paris, e compartilhei minhas dúvidas em relação a que tipo de programa buscar. Tenho o receio de que um doutorado para artistas, com foco na prática, se mostre raso em termos teóricos; ele concorda. Mas também, inversamente, temo que um doutorado unicamente teórico vá inviabilizar minha prática artística; ele discorda. É preciso, ignoro como ou onde, encontrar algum programa, com essas pessoas, mas que me dê as condições certas — tempo, financiamento, motivação — de fazer o que já faço: apenas, melhor. Muito melhor. Esse novo caderno começa no lugar de uma mudança de curso, que me traz de volta à biblioteca (e também à academia?), sem que nada disso seja um retorno, mas um desenvolvimento lógico. As coisas estão mudando. Repetir a fórmula de anos passados é simplesmente estagnar. Sinto que é preciso formular — com urgência — novas estratégias que me permitam continuar, ainda que de outra forma, seguindo à risca aquela recomendação que fiz a mim mesmo em meu primeiro caderno, do ano de 2008: “Levar as ideias até o limite”.

                É o que também recomendava a si próprio Georges Perec, em Espécies de Espaço, de 1974, que li na preparação de minha exposição “As Coisas”. Nesse livro, sobre a morfologia do espaço — da página, da cama, do bairro, do cosmos —, ele observa, na forma de notas metodológicas: “É preciso ir mais devagar, quase estupidamente. Se forçar a escrever o que não tem interesse, o que é o mais evidente, o mais comum, o mais maçante” [p. 100]. E, logo adiante, o que poderia ser lido como um imperativo para todo o meu trabalho: “Não dizer, não escrever ‘etc.’. Forçar-se a esgotar o assunto, mesmo que possa parecer grotesco, fútil ou estúpido. Ainda não olhamos para nada, não fizemos senão identificar o que já havíamos identificado há muito tempo” [p. 101]. Esse caderno quer, portanto, levar a sério essa pesquisa que me assombra há dez anos, sobre as formas mitológicas de escrita, quer que eu pare de dizer ou de escrever ‘etc.’ a seu respeito, quer ir até o fim do assunto — ou até o início de uma coisa nova.



C




Grande Bibliothèque de Montréal  12.02.20



                Parece que sabia que domingo passado seria o último dia antes da tempestade. Consegui então vencer a premência das demandas imediatas e atender a uma necessidade outra, que responde a uma temporalidade também muito distinta das demais: aquela do Caderno. Foi a primeira vez em um ano, a segunda em muitos anos. Escrever aqui é, entre muitas outras coisas, uma tentativa de reencontrar esse outro arco temporal, que se dá o tempo de olhar para trás, de reavaliar, de examinar, de entender o que tem acontecido, o que tem me acontecido, e que excede muitas vezes a esfera da compreensão e, portanto, a minha capacidade de responder em tempo real. Nesse sentido, ao dizer ano passado que meus cadernos sempre me serviram de contrapeso à academia, eu talvez devesse ter ido mais longe na análise. Pois este aqui serve ainda à mesmíssima finalidade dos demais: ele é uma espécie de tubo de ensaio, de laboratório, para uma prática que parece estar saindo do eixo. Antes, era a academia, agora é a arte. (Por um instante, pensei que seria a academia de novo). São todos, enfim, cadernos de crise, cuja função é buscar pistas sobre isso que falta, que escapa, que foge. Noto: minha incapacidade de subordinar essa temporalidade mais imediata a outras, mais profundas, mais dilatadas, é o sinal cada vez mais nítido de uma perda de foco. É uma crise de orientação: já não sei onde estou, por isso, já não consigo fazer planos; mas é também uma crise de direção: já não sei para onde deveria estar indo, por isso, já não sei onde teria de estar.

                Os últimos dois dias foram uma explicitação quase pedagógica disso: após retomar o caderno, fui atropelado por demandas de todos os tipos, relativas às obras da feira que se aproxima, ao trabalho a ser a ser apresentado aqui na residência, projetos grandes para os próximos meses, questões de materiais, organização, pagamentos, tudo surgindo de uma hora para outra, mas igualmente “urgente”. Onde estavam, afinal, todos esses problemas no fim de semana? Ora, mesmo que dê conta dessas demandas — que são demandas do tempo dos outros —, ainda assim, e talvez por isso mesmo, seguirei aprofundando meu problema. Já não é mais a questão, tão antiga em meus diários, de meu atraso em relação ao mundo, mas da incapacidade de atender a qualquer demanda que exceda esse tempo do agora. Tem sido o caso, notadamente, do projeto que vim realizar aqui. É uma sequência de “As Coisas”, de 2018, em que tomo agora um único objeto, escolhido arbitrariamente entre tantos outros, como prisma para a reconstituição metonímica de cada um de meus anos de vida (1985-2018). Quero falar de mim mesmo, na primeira pessoa (eu), mas como se fosse outra pessoa, na terceira pessoa (ele). Quero produzir esse estranhamento na voz, essa fricção, esse desdobramento de “si”, para além do “mesmo”.  Não partir das memórias, ideias, opiniões que se tem, que tenho, mas deixá-las de lado, colocá-las entre parênteses, a fim de tentar descobrir quem se é, ou fui, a partir desses restos. São fotografias, carnês de vacinação, revistas pornográficas, walkmans, óculos quebrados, passagens aéreas, objetos variados que trouxe numa mala abarrotada para Montreal. Mas, um mês e meio passado do início do ano, tendo trabalhado muito, mas sempre em outra coisa (ensaios, editais, publicações). Preciso começar a abrir espaço para a leitura, para o estudo, para a escrita, ou seja, para o verdadeiro trabalho que vim realizar aqui.

                Ora, se algo pode, e tem de, ser dito é que finalmente tenho as ferramentas certas. É a primeira vez que me foram dadas as condições materiais, a estrutura (ainda que simples) e, sobretudo, o tempo adequado para executar esse projeto. Além disso, por uma dessas felizes coincidências que têm me guiado nos últimos anos, trouxe comigo no avião o livro certo: Anos de formação: os diários de Emílio Renzi (1957-1967), de Ricardo Piglia. Além do uso arrojado da forma literária do diário íntimo, ele traz ainda importantes reflexões sobre um tipo de escrita, atrelada a um tipo de experiência de pensamento, que me interessa investigar. Mais até do que em Perec, me impressiona (e também assusta) encontrar em Piglia descrições tão precisas do que considero ser a “minha” busca. Mas não é só teoria: ao ler seus diários — o que faço todas as noites antes de dormir — tenho a estranha sensação de estar vivendo uma vida repetida, de ser eu mesmo um duplo do escritor, de estar perseguindo um objeto que já foi buscado 60, 70 anos antes. (Mas já foi encontrado? E se a mesma pergunta for feita por duas pessoas diferentes, em lugares diferentes, em épocas diferentes, a resposta será a mesma?) Transcrevo aqui a descrição do seu procedimento autobiográfico, anunciado ainda no início do livro — que agora tenho todo rasurado, sublinhado, anotado:

“Sua vida poderia ser narrada seguindo essa sequência ou qualquer outra parecida. Os filmes a que assistiu, com quem foi ao cinema, o que fez depois; tinha tudo registrado de modo obsessivo, incompreensível e idiota, em minuciosas descrições datadas, com sua trabalhosa letra manuscrita: estava tudo anotado naquilo que agora decidira chamar de ‘seus arquivos’, as mulheres com quem vivera ou passara uma noite (ou uma semana), as aulas que dera, os telefonemas de longa distância, notações, sinais, não era inacreditável? Seus hábitos, seus vícios, suas próprias palavras. Nada de vida interior, somente fatos, ações, lugares, circunstâncias que, repetidas, criavam a ilusão de uma vida. Uma ação — um gesto — que insiste e reaparece, e diz mais do que tudo que eu possa dizer de mim mesmo” [p. 16].

                Assim como em Perec, o recurso aos “fatos, ações, lugares, circunstâncias” não é um delírio de objetividade, mas um estratagema para burlar essa instância da “vida interior”. Passar pelo que é exterior, pelo que parece ser mais contingente, é uma forma de fazer o sujeito se atentar para tudo aquilo que existe e que independe, em maior ou menor grau, do que ele ou ela acha, opina, sente, lembra etc. Ater-se às ações (ou coisas) concretas significa também olhar para si próprio, mas como faria um analista ou, ainda, um detetive, buscando aquilo que excede as determinações do “eu”, aquilo que é propriamente inconsciente, aquilo que fazemos (e somos) sem prestar atenção ou atribuir importância. Trata-se, portanto, de uma experiência de desdobramento, em sujeitoe objeto, do que seria supostamente indivíduo, isto é, não divisível. Mas Piglia vai mais longe e se aproxima ainda mais dessa “minha” experiência (mas como, se a vivo depois?) ao situar seu projeto de autobiografia sob a sombra de um fantasma: “Ando preocupado com minha predisposição a falar de mim como se estivesse cindido e fosse duas pessoas. Uma voz íntima que monologa e divaga, uma espécie de trilha sonora que me acompanha o tempo todo e que às vezes se infiltra naquilo que leio ou escrevo aqui. Ontem pensei que deveria ter dois cadernos diferentes. O A e o B” [p. 142]. Ou ainda mais explicitamente: “No meu caso, poderia dizer: entrei na minha autobiografia quando consegui viver em terceira pessoa” [p. 199].

                Essa possibilidade de permuta entre os pronomes pessoais se avizinha à operação que está na base de minhas obras, que consiste em me perguntar: quando é que, em atividades aparentemente banais, desimportantes da minha vida cotidiana, estou vivendo uma experiência de ordem potencialmente coletiva? Mas é ainda mais revelador que o escritor diga querer, não apenas falar ou escrever, mas “viver” como um outro. Pois a verdadeira questão por trás dessa ideia é que não se trata apenas de uma ideia. Por isso, não basta pensar a respeito dela, é preciso operá-la em sua própria vida. Porque já se enxerga como um duplo, um certo Ricardo Emilio Renzi Piglia escreve esses diários, sem nunca permitir ao leitor decidir quem está falando, e sobre quem se está falando: “Reler meus ‘cadernos’ é uma experiência nova, talvez se possa extrair dessa leitura uma narrativa. O tempo todo me espanto como se fosse um outro (e é isso que sou)” [p. 224]



D




Grande Bibliothèque de Montréal  12.02.20 [sequência]



                A verdadeira vida não é essa que fabricamos em nossos pensamentos, não é a narrativa reconfortante que nos contamos todas as manhãs diante do espelho: “Este sou eu”. É, pelo contrário, a narrativa que, às vezes, e sempre com espanto, lemos nas linhas de nossas rugas, no fundo de nossas olheiras: “Este sou eu?” É apenas olhando para si como um outro, olhando para si do ponto de vista do Outro, que podemos começar a elaborar a questão de nossas identidades pessoais. Já não me surpreendo ao encontrar em Piglia uma elaboração da função dos objetos, das coisas, nessa busca indireta de si. Apenas tomo nota:  

“O pior é quando encontro rastros do passado, hoje um anel, quando uma lembrança se impõe e aí parece que vivêssemos [é como se vivêssemos?] fora do tempo. Não se pode mudar o passado. Não se pode mudar o passado? Jogar fora o anel [...]. É preciso encontrar um objeto qualquer que permita dizer pela metade o que nunca deve ser dito diretamente, por exemplo o anel que dei de presente a Inés, uma água marinha muito pura que ela me devolveu porque não queria se emocionar ao ver que ainda levava com ela. Ela está aqui sobre a minha mesa como um rastro de algo que morreu e é, portanto, um fetiche que não perdeu sua emoção. (Não joguei fora, está aqui sobre a mesa)” [p. 266, meu colchete, meu itálico].

                O anel é de fato um fetiche, cumpre funções simbólicas, tem propriedades míticas. Pois é um objeto que existe simultaneamente no presente e no passado; é também, a uma só vez, o que há de mais contingente e de mais essencial daquela relação amorosa. Não se muda o passado jogando fora os objetos guardados, mas, pelo contrário, tirando-os de suas gavetas, caixas e armários; interrogando-os: o que são? E o que foram? E eu, quem sou? Quem era então? Nesse sentido, penso agora que o Diário seja também um desses objetos exemplares — pois ele é também um quando escrito e radicalmente outro quando lido. Ainda que (ou ainda mais quando) relido por seu autor, que retorna ao passado-presente do relato em busca de uma dimensão sintomática, significante, propriamente inconsciente de sua experiência. Ora, se o diário for mesmo essa espécie de “epi-objeto”, então seria preciso dizer que, no auge da minha confusão mental, da minha perda de foco, de rumo, de tempo, eu já havia encontrado meu campo de estudos privilegiado, minha bússola, meu compasso, meu relógio, aqui mesmo nestas páginas vazias. Estariam ligados, para mim, portanto: Academia, Biblioteca, Caderno... e Diário. Mas eu não tinha como saber enquanto escrevia. E a questão é toda essa: eu não tenho como saber enquanto escrevo. Nem antes, nem agora. Escrevemos sempre às cegas, registramos, anotamos, estupidamente mesmo, esperando que um dia nos apareça, na leitura dessas linhas, como num clarão, a certeza daquilo que fomos, daquilo que somos, daquilo que um dia aspiramos ser. Paradoxo de uma identidade construída e diferida que justifica, talvez, esta derradeira citação do autor (que, para minha surpresa, substitui Perec nessa investigação, sem exatamente tomar o lugar dele): “Tudo muda quando leio as notas e começo a descobrir conexões, repetições, a insistência de certos motivos que reaparecem e definem a entonação dessas páginas. Em suma, aqui se recombinam os fatos, os personagens, os lugares e os estados da alma; a particularidade é que tudo isso está presente ao mesmo tempo que se narra um dia após o outro. Nisso, um diário se parece com os sonhos” [p. 193].










Pequeno ensaio, feito a pedido das Edições Membrana, sobre o sempre crescente da tecnologia sobre nossa percepção do real. Relaciono a transformação operada pelo relógio sobre o tempo no século 19 com aquela operada pela fotografia sobre o espaço no século 20. Com isso, aponto o lugar paradoxal que ocupam as máquinas nas sociedades ocidentais: quanto mais presentes, menos perceptíveis se tornam. Mas, uma vez instaladas em nossos bolsos, rostos ou telas, funcionam como filtros (propriamente invisíveis), substituindo uma natureza concreta, qualitativa, heterogênea, por seu duplo, uma segunda natureza abstrata, quantificável e homogênea, pronta para ser consumida, trocada e acumulada. Assim como o dinheiro. 


Fonte > publicação, Não Há Tempo – É Tudo Erosão, Edições Membrana, São Paulo, 2021




I

                É interessante pensar que o primeiro relógio mecânico tenha sido concebido a partir de uma das máquinas mais primitivas já construídas: o moinho movido à água. Foi na China, no século 11. O polímata Sū Sòng teve a ideia de utilizar a força do córrego que gira a roda não para triturar grãos, mas para medir a passagem do tempo, que transcorria à medida que as pás iam se enchendo de água.

                A despeito da simplicidade do mecanismo, desprende-se daí uma ideia bastante complexa do tempo. Por um lado, e ao contrário dos antigos relógios solares, este tinha a vantagem de manter um fluxo constante ao longo das 24 horas. Por outro lado, essa mesma continuidade era também passível de ser subdividida em unidades sucessivas que, correspondendo ao volume das pás, podiam ser isoladas umas das outras e contabilizadas.

                Mais do que interessante, é sintomático que tenha sido assim. Pois tal intuição construtiva antecipa a transformação radical que as máquinas vão, posteriormente, operar sobre nossa percepção do tempo. Antes da Revolução Industrial no Ocidente, estas eram exceções em um mundo essencialmente governado por ferramentas. O que muda, entre umas e outras, é o tipo de força motriz: já não é mais a energia humana (ou animal) que move o mecanismo, mas uma força natural, seja ela hidráulica, eólica, solar, a combustão, a vapor, etc.

                Essa revolução não é só energética, mas também funcional. Aparentemente, e a julgar apenas pelos resultados, a máquina parece servir ainda aos propósitos do homem: no final do dia, o grão foi moído. E o que é melhor: sem o esforço envolvido no uso de uma ferramenta. Mas, conceitualmente, essa independência muda tudo, inclusive o lugar do homem no processo produtivo. Ao passo que a ferramenta era uma extensão da mão do homem, a máquina se torna um substituto, podendo operar agora suas próprias ferramentas.

                É o que nota Marx no livro 1, de O Capital, no capítulo 13, intitulado 'Maquinaria e grande indústria': "A máquina, da qual parte a Revolução Industrial, substitui o trabalhador, que maneja uma única ferramenta, por um mecanismo, que opera com uma massa de ferramentas iguais ou semelhantes de uma só vez, e que é movimentada por uma única força motriz, qualquer que seja sua origem”(1).

                Por isso, é preciso entender o que implica esse caráter automático da máquina: para que possa funcionar "sozinha", é preciso que um operador execute as ações necessárias, que ao menos vigie o seu funcionamento. A máquina tem um mecanismo sofisticado (e caro), que só pode administrar uma certa quantidade de energia; com um pouco mais ou um pouco menos que a medida ideal, ela quebra. E isto é um problema. Ao contrário, o homem vale cada vez menos, podendo ser substituído por outro análogo. Ou por uma mulher. Ou criança.

                Mas não foi apenas o trabalhador que se tornou então indiferente e substituível — quase um autômato —, foi o próprio tempo do trabalho. Se este era antes medido pela duração das tarefas específicas (o tempo de ordenhar a vaca, de curtir o couro, as estações das colheitas), ele passou a ser determinado pelas unidades abstratas que compunham os quadrantes dos relógios: horas, minutos, segundos.

                A rigor, já não importava mais que o trabalhador realizasse essa ou aquela outra tarefa (as posições são intercambiáveis), mas apenas que tratasse de não desperdiçar o tempo de seu patrão. Pois, sendo seu tempo de vida a única coisa que lhe restou a vender, foi isto que, em última instância, o seu patrão adquiriu. De fato, quando o tempo se torna uma moeda de troca, é preciso reconhecer, como diz E. P. Thompson, em Costumes em comum, que "ninguém (mais) passa o tempo, e sim o gasta"(2).

               A introdução dos relógios nas fábricas não só teve o sentido de sincronizar a cadeia produtiva, cada vez mais complexa e mecanizada, mas também funcionou como uma nova forma de controle social sobre os trabalhadores, sob a autoridade dessa nova "moeda-tempo". Não à toa, ainda no início do século 19, revoltas populares foram dirigidas contra o relógio, sentido pelos operários como uma fonte de opressão ainda mais violenta que o restante do maquinário. Contudo, aos poucos, a estratégia foi se transformando: aprendeu-se a usar o relógio a favor das reivindicações sociais, em campanhas sucessivas de redução da carga horária semanal. Aqueles ponteiros passaram a marcar então a diferença objetiva que existia, pelo menos naquele momento, entre o tempo de trabalho e o tempo de descanso. 

                Ora, quando isso aconteceu, o tempo abstrato do relógio já se naturalizou. E isso só pôde acontecer porque o aparelho foi se tornando cada vez mais barato, cada vez mais popular e, sobretudo, cada vez menor. Como um instrumento portátil, ele foi aos poucos entrando no interior das casas e, mais tarde, no bolso dos casacos dos indivíduos. Desapareceu de vista para tornar-se onipresente. 


II

                Algo semelhante ocorreu com a máquina fotográfica, inventada nas décadas finais da Primeira Revolução Industrial. Quando Louis Daguerre anunciou ao mundo seu método, em 1839, ele o caracterizou em seu texto 'Daguerreótipo' primeiramente por sua praticidade: "os meios de execução são simples, não exigem nenhum saber especial para serem utilizados, bastando apenas cuidado e um pouco de hábito para conseguir os melhores resultados"(3).

                Como se sabe, a atribuição da paternidade da fotografia a Daguerre tem muito de político — um deputado convenceu o Estado francês a adquirir essa patente em particular —, mas diz muito também sobre a natureza do invento: no fundo, mais importante que produzir imagens era criar um produto.

                Para inventores como Daguerre, não bastava encontrar uma forma de fixar as imagens fugidias da natureza no interior de uma câmera escura. Era preciso garantir que o procedimento fosse estável, relativamente simples e, sobretudo, economicamente viável. E, no fim das contas, o método era objetivamente mais simples que o de seu antigo parceiro comercial, Joseph Nicéphore Niépce, que obtivera a primeira fotografia mais de dez anos antes.

                Esse espírito comercial ganhou sua expressão máxima com George Eastman, o criador da marca Kodak, cujo slogan mais famoso é "você aperta o botão, nós fazemos o resto". Ao contrário dos demais aparelhos disponíveis em 1888, caros, portentosos e de manuseio complexo, sua proposta era uma caixa fechada, fácil de ser transportada e manipulada, contando com um rolo de 100 poses e um foco fixo que não permitia alterações.

                Seu produto se destinava não àqueles que possuíam os recursos para a aquisição de um equipamento extravagante, ou o tempo livre necessário a experimentações “artísticas”, mas a todo e qualquer um. Por trás dessa iniciativa de democratização das imagens, estava também uma estratégia comercial que se tornaria exemplar: basicamente, Eastman compreendeu que valia a pena apostar em dispositivos mais simples (e mais baratos) para, em seguida, lucrar com peças e serviços adicionais.
 
                Custando US$ 1, sua câmera era basicamente um modo de vender a real inovação da companhia: um filme de rolo removível que tinha de ser revelado no laboratório da Kodak. Criava-se aí um novo mercado, altamente lucrativo e "fidelizado", feito de usuários amadores que não precisavam saber nada sobre seu equipamento e que, por isso mesmo, passavam a depender completamente de seu fornecedor.
 
                Assim, o que foi anunciado como uma nova forma de autonomia acabou paradoxalmente gerando uma nova forma de dependência. Econômica, por certo, mas também existencial. Pois Eastman não só respondeu a um legítimo desejo do público — o de guardar uma memória visual de sua vida —, mas trabalhou ativamente para fazer disso uma espécie de direito inalienável. Como resultado, a possibilidade de exercer tais direitos fotográficos sobre o mundo passou a levar o nome de uma empresa privada: era o "momento Kodak".
 
                E a publicidade teve um papel fundamental na criação de uma demanda que era vivida por seus consumidores como algo da ordem do mais puro desejo, imediato, natural, espontâneo. Por meio de anúncios reiterados ao longo de muitas décadas, a própria palavra "Kodak" — escolhida por soar bem, a letra "K" parecendo moderna — passaria a ser associada com o próprio ato fotográfico. Mais do que remeter à câmera e ao filme que estavam objetivamente à venda, Eastman conseguiu transformar sua empresa em um verbo da língua inglesa: "Kodak as you go", dizia o anúncio.


III

                A miniaturização da câmera fotográfica também foi fundamental nesse processo de naturalização da técnica. Quando passaram a caber no bolso de um casaco, elas se tornaram uma extensão invisível do corpo do indivíduo — uma espécie de prótese mecânica, mas sentida como algo orgânico. Então, fazer fotos já não era mais uma atividade à parte, um hobby de luxo, mas uma atividade intrínseca à vida cotidiana: se come, se trabalha, se cria uma família e se fotografam todas essas coisas. Caso contrário, não aconteceram.
 
                Susan Sontag apontou, em sua coletânea de ensaios Sobre a fotografia, o surgimento, no século 20, de uma "visão fotográfica" que dispensaria a própria câmera. De tanto consumirmos imagens, diz ela, em cartões-postais, revistas e (hoje) telas, aprendemos a ver o mundo fotograficamente. Trata-se aí de um novo código visual que redefine "todas as nossas ideias sobre o que vale a pena olhar e sobre o que temos o direito de observar"(4).

                Isso nada tem de inocente. A lógica do "enquadramento" da fotografia destrói a aparência de unidade da natureza, típica da idade clássica, despedaçando a realidade em uma infinidade de átomos visuais. A fotografia, diz ela, não vem apenas constatar que o mundo moderno está fraturado, desarticulado, desconexo; vem extrapolar esse estado de fragmentação.
 
                Longe de seus contextos de origem, cada um desses fragmentos de mundo assume o papel de uma nova unidade provisória. Mas, contrariamente à imagem clássica da natureza, as fotografias já não são mais transparentes, e sim essencialmente opacas, abstratas, peças soltas de uma unidade maior sempre faltante. Assim, uma visão alternativa da natureza se sobrepõe à realidade, constituída pela correlação especulativa de todas essas imagens descontextualizadas.

                Especulativa, pois essa nova experiência do real excede a experiência concreta de qualquer indivíduo. Além de seu campo de experiências, ele ou ela tem de lidar também com fragmentos das vidas de outras pessoas, inclusive de outras épocas. Não apenas a soma das partes é sempre maior que o todo, como a ordem desses elementos é também indiferente. Sontag escreve ainda: "Num mundo regido por imagens fotográficas, todas as margens ('enquadramento') parecem arbitrárias. Tudo pode ser separado, pode ser desconexo, de qualquer coisa"(5).

                Em suma, a câmera fotográfica parece fazer com o espaço o que o relógio mecânico havia feito com o tempo. A realidade é fragmentada em unidades equivalentes e intercambiáveis, assim como o tempo fora antes fragmentado em intervalos abstratos e substituíveis. Em ambos os casos, a manutenção da referência ao mundo da experiência não passa de uma miragem. As imagens fotográficas não correspondem mais ponto por ponto às coisas, exatamente como as subdivisões do relógio há muito já não coincidiam com uma fração exata do curso aparente do Sol. 


IV

               Se no século 19 o relógio transformou tempo em dinheiro, no século 20 foi a vez de a fotografia capitalizar o espaço. Jonathan Crary, em Técnicas do observador, propôs um paralelo direto entre as imagens e o dinheiro: "(Ambos) são formas mágicas que estabelecem um novo conjunto de relações abstratas entre indivíduos e coisas, e impõem essas relações como sendo o real"(6).

                Faz sentido: o dinheiro é, de fato, essa medida impessoal de todas as coisas, produzida em série e circulando livremente sem corresponder exatamente a seus supostos referentes físicos. Mas o essencial do paralelo reside na ideia de troca: não importa que não correspondam à realidade, apenas que correspondam entre si. A fotografia, diz ele, criou uma medida universal entre todas as coisas visíveis, que, tornadas imagens, podem agora ser isoladas, quantificadas e acumuladas sem limite.

                Mas é igualmente importante que estas relações sejam sentidas não como abstratas, e sim como perfeitamente concretas. Este é o poder “mágico” do capitalismo, que permite apresentar-se não como uma construção social e histórica, mas como uma resposta natural aos nossos desejos mais íntimos.
 
                Essa mesma ideia já aparecia em Sontag, quando evocava uma certa "magia equívoca da imagem fotográfica". Ora, isto não é exclusividade da câmera fotográfica, mas diz respeito ao que ela partilha com todas as outras máquinas, sobretudo com o relógio.
 
                Por tirar sua fonte de energia diretamente da natureza, dispensando a ação do homem, essas máquinas podem aparecer como uma extensão da própria natureza. Mas são ainda melhores, mais práticas, mais rápidas: tudo o que antes acontecia de forma espontânea agora se dá de forma instantânea, dando, assim, a impressão de um mundo encantado, no qual basta "apertar o botão" para que tudo aconteça "sozinho".

                Enfim, uma segunda natureza, na qual finalmente poderíamos descansar. O que é evidentemente falso: quem dorme é o proprietário da máquina, nunca o operador. Mas a promessa é indiscutivelmente sedutora e, por isso, segue bem viva desde que o antigo epigramista grego Antípatro de Tessalônica compôs, em 85 a.C., talvez a primeira campanha publicitária da história — não por acaso, de uma máquina, o moinho de água:

"Para de moer o grão, ó mulher que te esfalfas no moinho, dorme até tarde, mesmo que o canto do galo anuncie a alvorada, porque Deméter ordenou às ninfas que realizem por suas mãos o trabalho e, inclinando-se no cimo da roda, elas fazem girar as pás que movimentam a pesada pedra molar de Nysis"(7).

•••



1    MARX, Karl. O Capital: crítica da economia política. Coordenação e revisão de Paul Singer. Tradução de Regis Barbosa e Flávio R. Kothe, São Paulo: Nova Cultural Ltda., 1996. t. 2, cap. 13, p. 11.

2    THOMPSON, Edward Palmer. “Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial”. In: THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em comum. Tradução de Rosaura Eichemberg. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 271.

3   DAGUERRE, Louis Jacques Mandé. “Daguerreótipo”. In: TRACHTENBERG, Alan (Org.). Ensaios sobre fotografia: de Niépce a Krauss. Lisboa: Orfeu Negro, 2013 [1839]. p. 32.

4   SONTAG, Susan. “Na caverna de Platão”. In: SONTAG, Susan. Sobre a fotografia. Tradução de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (1977). p. 13.

5   Idem, p. 33.

6   CRARY, Jonathan. Técnicas do observador: visão e modernidade no século XIX. Rio de Janeiro: Contraponto, 2012. p. 22.

7   GIMPEL, Jean. A Revolução Industrial da Idade Média. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2001 (1975). p. 20-21.











Neste ensaio especulo sobre a ideia do artista como produtor "autônomo" e as implicações desse papel para o sistema da arte contemporânea. Tomo minha obra Trabalhadores da Arte, 2019, como ponto de partida para perguntar, entre outras coisas: qual é, ao certo, o verdadeiro lugar da arte na organização do mundo do trabalho? Ou, de maneira ainda mais intuitiva: o que entendemos exatamente por obra na expressão "obra de arte"?

Fonte > Revista Traço, SP-Arte, São Paulo, 2020
+ Outros > Trabalhadores da arte, 2019




I
              
                No dia 1º de maio de 2019 um pequeno grupo de pessoas foi visto nas imediações do bairro da Barra Funda, em São Paulo, carregando uma faixa preta com os dizeres: O BOLETO SEMPRE VENCE. Para quem passeava naquele ensolarado feriado do Dia do Trabalhador, deve ter parecido insólita, ou mesmo cômica, a visão de uma passeata diminuta, esvaziada e silenciosa, que não impedia ninguém de ir a lugar nenhum.

                Era um trocadilho, claro, barato como devem ser os trocadilhos, mas trazia consigo uma ponta de amargor. Pois aludia também à aparente falta de propósito das jornadas de trabalho contemporâneas. Para muitas pessoas, no fim das contas, trata-se apenas disso mesmo: trabalhar para pagar contas que lhes permitam viver, para seguir trabalhando e pagar mais contas. Contrassenso aprofundado pelo próprio feriado, que só existe para os trabalhadores assalariados que (até pouco) gozavam dos benefícios e garantias históricos da CLT. Todos os demais, terceirizados, informais, ou à procura de emprego, não estavam nas ruas à passeio aquele dia.

                Um fotografo acompanhava a marcha alguns passos à frente. Não era um repórter, mas um dos participantes da ação. Seu intuito era produzir uma imagem que pudesse funcionar como “obra de arte”. Pois, sob esse prisma, a faixa remetia também a uma prática absolutamente naturalizada no meio das artes visuais: a desvinculação entre retorno simbólico e retorno financeiro como contrapartida ao trabalho artístico. O que faz com que grande parte dos artistas tenha de encontrar uma fonte secundária de renda para, paradoxalmente, sustentar sua atividade primária, esta quase sempre deficitária. Contrassenso novamente aprofundado pelo feriado, um dia “livre” e, portanto, ideal para a prática artística. Aquele pequeno grupo de pessoas, com sua faixa e sua câmera, tampouco estava nas ruas à passeio aquele dia.


II

                Trabalhadores da arte nasceu do desejo de lançar um olhar mais detido sobre uma questão que me inquieta há bastante tempo: qual é, ao certo, o verdadeiro lugar da arte na organização do mundo do trabalho? Ou, de maneira ainda mais intuitiva: o que entendemos exatamente por “obra” na expressão “obra de arte”? A fim de ir mais a fundo nas interrogações manifestas na obra, decidi na sequência criar um grupo de estudos. Sob o nome Arte Trabalho, este reuniu, ao longo de diversos encontros, um conjunto variável de artistas, curadores, pesquisadores, designers, produtores, atores, educadores, entre outros profissionais da cultura, tanto autônomos quanto assalariados. Embora seu objeto fosse as condições laborais na cultura de forma mais geral, uma questão introduzida pelos artistas impôs-se desde o primeiro dia, tornando-se o fio condutor de todos os debates posteriores: por que, afinal, estes não conseguiam pagar suas contas com arte? 

                Não era apenas uma preocupação abstrata. Afinal, nenhum deles — e eu me incluo aqui — podia contar com a arte como a sua única fonte de renda. Em muitos casos, o contrário mesmo se produzia: ao aceitarmos trabalhar por nada ou menos que nada, terminávamos pagando para produzir. A palavra “precarização” foi também trazida à baila desde o primeiro encontro. Mas, para extrair daí algum sentido, pareceu-nos importante fazer uma distinção de base. Pois não é possível, nem mesmo à título de metáfora, equiparar o trabalho artístico ao de prestadores de serviços altamente precarizados, cruzando a cidade por quinze a vinte horas por dia com seus carros e bicicletas alugadas de bancos e concessionárias. A despeito de alguns pontos de contato superficiais com Ubers e Rappis — como certa “flexibilidade” na gestão do tempo, resultando, via de regra, em uma jornada de trabalho estendida — uma diferença crucial nos serviu de linha de corte: escolhemos nossas profissões.

                As razões para isso são tantas quanto há artistas. Aqui, só posso falar por mim: decidi me dedicar às artes visuais por achar que assim poderia fazer pesquisa de forma mais “livre” do que na academia. Ser artista hoje significa, para mim, tentar aplicar aquelas ferramentas teóricas e metodológicas a algo que, à época, se encontrava completamente fora de meu alcance: minha experiência pessoal. Ora, justamente porque tomo a mim mesmo como “objeto de estudo” em meus projetos, é que não posso me dar ao luxo de ser leviano. No contexto de uma análise de cunho social, é preciso dizê-lo sem meias palavras: tenho clareza acerca do privilégio extraordinário que tive por nascer em uma família de classe média alta e por jamais ter sofrido qualquer tipo de preconceito, devido à minha cor de pele, gênero ou orientação sexual. Sem esse alinhamento de fatores, muito dificilmente teria tido acesso às instituições de excelência em que estudei no exterior, bem como às oportunidades de trabalho, mesmo que mal remuneradas, que me foram oferecidas desde meu retorno ao Brasil. No que diz respeito à minha atividade no campo da arte, tal privilégio se traduz na possibilidade de dedicar-me a algo que me traz um enorme retorno simbólico. Eu gosto do que faço.


III

                Porque eu gosto do que faço, tenho muitas vezes a impressão de que respondo apenas à uma motivação interna, a um desejo intrínseco de fazer arte. No entanto, certas leituras teóricas que fiz no contexto do grupo de estudos me levam a crer que estou equivocado. Penso aqui, notadamente, na argumentação de uma artista-pesquisadora como a da estadunidense Andrea Fraser, conhecida por suas obras ligadas à Crítica Institucional. Em uma comunicação intitulada “Como oferecer um serviço artístico: uma introdução”, ela aponta claramente para “certo mito que persiste na experiência subjetiva [da maior parte] dos artistas”. Para estes — e intimamente me incluo aqui — não haveria na realidade uma “demanda para a arte como tal, mas apenas para alguns indivíduos de particular gênio, etc., e que, em sua ausência, todo o aparato da arte contemporânea iria simplesmente desaparecer”.(1) 

                Todo o contrário é verdadeiro. A prova é que, no Brasil como no mundo, o mercado de arte vem se expandindo há muitas décadas, alimentado por uma crescente demanda por obras contemporâneas. Mas não só o mercado, também as instituições, como fundações e museus. Tal demanda não é imediatamente dirigida a “indivíduos de particular gênio” mas, pelo contrário, é disputada a unhas e dentes pelos agentes da arte, não apenas os artistas, mas também jornalistas, críticos, curadores e galeristas. “Essas acirradas disputas”, explica Fraser, “constituem a dinâmica pela qual o campo [da arte] reproduz a si próprio”.(2)Uma forma mais simples de dizê-lo, talvez, seria a seguinte: pessoas desejam obras de arte, mas ninguém precisa da suaou da minha arte. A menos, é claro, que se prove o contrário. Na tentativa de obter alguma legitimação em um meio que exige credenciais institucionais (e não apenas número de vendas), artistas têm de encontrar um meio de subsidiar sua produção, seja com empregos secundários, seja com ajuda da família ou do parceiro (se isso for uma opção), seja com assistência social (se isso for uma opção), seja com editais públicos e privados (se isso for uma opção), ou em geral, com uma combinatória de alguns desses elementos. Mesmo para os artistas já consagrados no meio, vale dizer, as vendas não são uma garantia real de renda fixa. Quando acontecem, e mesmo quando rondam valores vultuosos, são ainda espaçadas e inconstantes demais.

                Tampouco importa o “tipo” de arte que se faça. Fatalmente, a conta vai chegar. Meu caso é o do artista “de projetos” ou ainda “pós-estúdio”. Ao contrário de artistas que precisam de espaço físico e materiais à disposição, posso trabalhar perfeitamente bem da mesa de um café qualquer usando apenas meu computador. No entanto, à hora de minha exposição, terei de pagar de uma só vez todos os numerosos fornecedores dos quais dependo: o tratador e o impressor de minhas fotos, o soprador de vidro de meus neons, o montador de minhas instalações, os participantes de minhas performances, o revisor de meus textos, os eventuais mediadores no espaço expositivo, etc. Já de artistas que conseguiram encontrar um emprego fixo de quarenta (ou mais) horas semanais, tive ainda o relato de que a segurança da remuneração é frequentemente acompanhada da frustração de estar “desperdiçando o melhor de seu tempo” longe de sua produção. Em todos os casos, é preciso calcular, uma e outra vez, o tempo que se passa arrecadando fundos para a produção versus o tempo que se passa gastando esses fundos na produção. A equação é tão simples quanto impiedosa: mais tempo arrecadando fundos significa menos tempo produzindo; mais tempo produzindo implica em menos fundos para se gastar. No meu caso, novamente, tenho o privilégio de gostar de minha atividade secundária: a docência.


IV

                Corro assim o risco de dar a impressão que artistas são “empreendedores” por natureza. Não são. Não somos. Afinal, uma coisa é compreender tal correlação, outra é aceitá-la, e outra ainda muito diferente é encontrar um equilíbrio possível entre esses termos. Muitos de meus colegas (inclusive alguns participantes de Arte Trabalho) assumem com frequência posturas que desafiam os conceitos mais básicos do bom senso econômico, optando, por exemplo, por endividar-se com sua prática principal a perder ainda mais tempo com seus empregos secundários. E, após encontrar uma fonte de renda que lhes permita acumular algum capital, abandonam esse trabalho tão logo tenham ganho o estritamente necessário para sobreviver por um curto período de tempo. Embora eu mesmo tente me afastar desses impulsos “ineconômicos”, me surpreendo também, de novo e de novo, repetindo esse padrão de endividamento e essa atitude de pouco caso pelo dinheiro.

                Se não posso justificar esse comportamento, posso ao menos tentar compreendê-lo. É que, do modo como vejo as coisas, a remuneração não é o objetivo do meu trabalho, mas apenas omeio de seguir produzindo. (Em realidade, essa modéstia me é também vantajosa pois, se produzisse arte com a intenção de fazer fortuna, é imensamente provável que me frustrasse. Todas as estatísticas disponíveis mostram que a este é um campo do tipo “winner-takes-all”, estruturado de forma que pouquíssimos ganhem muito e a maioria esmagadora ganhe muito pouco ou menos que nada). É claro que esta distinção entre fins e meio, bastante simplória, em verdade, poderia ser aplicada a virtualmente qualquer profissão (embora não a todos os profissionais). Mas apenas na arte, aparentemente, indivíduos com formações de tão alto nível estão tão dispostos a trabalhar por tão pouco. Ou, o que não é tão raro, de graça, ou mesmo pagando de seu próprio bolso.

                Por certo que algo se ganha em troca desse sacrifício. Afinal, em que outra área gozaríamos de tantas liberdades? Que outra profissão oferece a mesma quantidade de pequenos retornos simbólicos aos seus agentes? Estes podem vir nas mais diversas formas: como prêmios (remunerados ou não), exposição pública (inserções na mídia), convites a integrar círculos sociais de alto escalão (jantares, coquetéis, festas) etc. Mas estes também podem ser identificados em pequenas coisas do dia a dia, tais como “certas liberdades particulares na hora de se vestir, de opinar, de rebelar-se frente às imposições ou de estruturar os tempos em lugares de trabalho”.(3)É o que aponta um relatório do Proyecto Ocio, uma investigação conduzida por um grupo de pesquisadores chilenos ligados ao Departamento de Antropologia da Universidad Alberto Hurtado. Foram os próprios artistas entrevistados em Santiago que revelaram ainda “sentir-se alheios e desconectados com respeito à diversas práticas que são frequentes no ‘comum dos mortais’: [...] as preocupações estritamente materiais, as modas do consumo”.(4)Tais depoimentos corroboram com o imaginário, bastante difundida na sociedade, da arte como uma atividade excêntrica, excepcional, exclusiva. Em sua versão “profana”, ela ofereceria a certos indivíduos a possibilidade de destacar-se da massa. Em sua versão “sagrada”, uma parcela de eternidade.


V
 
                Para além do que havia preconizado Walter Benjamin nos anos 1930 e 40, a arte parece ser capaz de atribuir uma “aura” distintiva, não apenas às obras, mas também a seus autores. É o que explica que uma ferramenta deexcentricidade — literalmente, capaz de tirar algo do centro, da norma, da fôrma —, possa promover o movimento inverso: isto é, o de pôr no centro das atenções certos elementos “marginais” que, de outra forma, estariam condenados a um rigoroso regime de invisibilização social. Para certos indivíduos, sobretudo os relegados às bordas do sistema, tais como os negros, indígenas e LGBTQI+, a opção por tornar-se artista se situa além de uma mera busca de legitimação: ela é também uma estratégia de sobrevivência por meio da visibilização de sua diferença. 

                A “aura” inerente ao campo artístico se deve ao fato de esta constituir uma fonte privilegiada de “capital social”. Este termo, trabalhado nas ciências sociais, descreve uma série de recursos extremamente valiosos na obtenção de legitimação e influência junto a uma complexa rede de relações sociais. Embora estejamos habituados a identificar e escalonar nossas classes sociais em grupos A, B, C e assim por diante, que respondem a recortes de renda, essas letras — em tese — nada nos dizem acerca desse outro valor, que existiria para além do mero alcance financeiro. O verdadeiro capital social (ou cultural), diz a teoria, não pode ser comprado. No entanto, na prática, não é raro que as classes economicamente dominantes sejam também culturalmente as mais influentes. A aparente contradição entre esses dois tipos de capital se resolve, nesse caso, não pela negação concreta do dinheiro, mas pelo gesto de escamoteá-lo simbolicamente. Simplesmente: não é chique falar de dinheiro à mesa. 

                Tal decoro traz consequências graves para o campo da arte contemporânea. Ainda que este esteja profundamente enraizado em um sistema mercantilista, tudo se passa como se todos fossem avessos ao dinheiro. “Uma coisa é o valor estético, outra coisa é o valor econômico de uma obra” é algo que pode ser facilmente ouvido nos altos círculos da sociedade, dita por aqueles que possuem os recursos para comprar as obras. E as compram, é claro, mas por seu valor social. O que significa que, ao menos discursivamente, compradores concordam plenamente com os artistas: na arte (e na cultura em geral), o dinheiro não deve ser um objetivo, mas apenas um meio. No entanto, há algo de traiçoeiro nessa “coincidência” retórica que separa de forma tão nítida arte e dinheiro. Para uns e para outros os resultados são muito diversos.

                Por um lado, tal lógica beneficia os detentores do capital econômico. Ao colocar o seu dinheiro “à serviço” da arte, por meio de compras ou generosas doações, estes são recompensados com capital social, sendo elevados ao título de amantes ou mecenas da arte. Além do mais, tal decoro é também extremamente favorável aos negócios. Foi o que notou o artista e economista holandês Hans Abbing ao perguntar-se pela razão dessa aparente “recusa da economia das artes”. Em introdução a seu livro de 2002, intitulado Por que artistas são pobres? A economia excepcional das artes, ele escreve:

“Por um lado, [na arte] o dinheiro e o comércio são rejeitados. Por outro lado, o comércio está bastante presente no templo sagrado da arte [...]. [Ele] não pode existir sem o comércio. Além do quê, o comércio nas artes se beneficia [do entendimento de] que a arte é sagrada e está para além do comércio. Para os negociantes de arte, negar a economia é lucrativo: é comercial ser anticomercial”(5).

                É o que na linguagem do businessse chama de “win-win situation”. Na contramão, tal recusa impede que os produtores dessa mesma arte acedam a um melhor nível econômico. Segundo essa lógica, de duas, uma: ou artistas estão servindo apenas a si próprios com suas criações, e não podem esperar (ou exigir) qualquer retorno financeiro; ou, pelo contrário, estão prestando um serviço ao outros, e não estão mais à altura de receber qualquer retorno simbólico. De onde deduz-se que os “verdadeiros” artistas são os que trabalham de forma autônoma, pelo puro prazer (ou necessidade) de se expressar. E o que é mais espantoso: sem nunca se deixar “corromper” por qualquer outra atividade remunerada, necessariamente de baixo capital social. Ora, como nota Andrea Fraser, tal demanda, internalizada pelos próprios artistas, é um engano: “Estarei mesmo servindo meus próprios interesses? Segundo a lógica da autonomia artística, trabalhamos apenas para nós mesmos; para nossa própria satisfação, para a satisfação de nossos próprios critérios de julgamento, sujeito unicamente à lógica interna de nossa prática, as demandas de nossas consciências e desejos [drives]”. Ao que ela mesma responde: “Tem sido minha experiência que a liberdade ganha nessa forma de autonomia não é mais, com frequência, do que a base para autoexploração”.(6)    


VI

                Na era da precarização voluntária, o artista opera como um fornecedor de “autenticidade”, produzindo com suas obras “valor de prestígio” para uma engrenagem articulada por agentes intermediários. E continua a fazer exatamente isso quando esse valor produzido, exposto e vendido, é sua própria "personalidade": artista jovem, artista promessa, artista maldito, artista engajado. O que é ainda mais perverso no caso de indivíduos oriundos de grupos marginalizados. Pois sua presença, de outra forma altamente improvável, em espaços de grande prestígio social, como galerias e museus, pode ajudar a dar visibilidade à pautas sociais urgentes; mas serve também de valiosíssimo “token” cultural para um sistema que, no fundo, lucra com a marginalização destes mesmos grupos.

                Essa constatação não implica em rejeitar simplesmente o “sistema”. Mais profundamente, ela convoca a repensar os papeis que assumimos em seu interior como artistas. Há uma longa história — do Renascimento à Modernidade, passando pelo Romantismo — por trás da figura do artista como um outsider e do trabalho artístico como exceção. Retraçar essa história, mesmo que de forma resumida, é algo que excede em muito os limites desse texto. No entanto, vale apontar para o fato de que uma inversão simbólica se produziu: a manutenção de tal ideário hoje tem o efeito prático de situar o artista na vanguarda de um capitalismo que é eminentemente simbólico e cujo maior ativo é a “criatividade”. A “autonomia artística” dos artistas boêmios do século 19 está sendo agora vendida como um valor de “realização profissional” essencialmente individualista. A exceção artística tornou-se a regra do mercado: “agora somos todos outsiders“. 

                Em arte, continuar a ver a si próprio como esse indivíduo autêntico, totalmente livre, especialmente sensível, em uma palavra, “genial”, serve hoje para aprofundar um processo de marginalização social, operado sob a forma da autoexploração. E garante ainda, de forma sistêmica, a perpetuação de um meio social excludente e elitista, reduzido àqueles poucos que, contando com fontes alternativas de renda, podem seguir adiante recebendo aplausos. Entre esses — sejamos muito claros a respeito — estão os artistas que participaram do grupo Arte Trabalho. Mas uma interrogação acerca dos papeis que assumimos nesse campo foi o primeiro passo para que pudéssemos apontar para uma questão estrutural, que afeta a todos em maior ou menor grau. Nesse sentido, antes disso, a obra Trabalhadores da Arte já era um convite à autoanálise dos envolvidos. Pois repetir, uma e outra vez, O BOLETO SEMPRE VENCE implica em olhar para o que fazemos todos os dias em nossos quartos, escritórios e ateliês de forma crua: isto é, como uma atividade historicamente reservada a um grupo de privilegiados, mas não como um privilegio em si, uma realidade contra a qual vale a pena lutar. Assim como os boletos.

•••



1    Andrea Fraser, “How to Provide an Artistic Study: An Introduction”. The Depot, Viena, outubro de 1994.

2    Ibidem.

3    Proyecto Ocio, “¿Los artistas como trabajadores? Sobre el trabajo artístico y la excepción”, Revista Artishock. Disponível em <https://artishockrevista.com/2019/05/16/artistas-trabajadores-proyecto-ocio/>. Acesso em 30 de janeiro de 2020.

4    Ibidem

5    Hans Abbing, “Why Are Artists Poor? The Exceptional Economy of the Arts”. Amsterdam: Amsterdam University Press, 2002, p. 12.

6    Andrea Fraser. Op. cit.











Artigo escrito em colaboração com Flora Leite sobre a pressão de produtividade nos primeiros dias de quarentena do novo coronavirus no Brasil. Os autores se valem da interrupção extraordinária das atividades presenciais para refletir sobre a suposta "normalidade" do meio da arte. E formular questões simples sobre práticas naturalizadas no passado, como: era mesmo necessário produzir tanto? Expor tanto? Expor-se tanto? Mas também para nos projetarmos no futuro, nessa já tão antecipada "retomada": ao final da quarentena, o quanto essas dinâmicas de visibilidade terão corroborado uma capitalização da tragédia que vivemos? E, neste caso, a quem terão beneficiado? E a quem não terão?

Fonte > Revista SeLect, São Paulo, abril 2020 
Fonte > Revista Mañana, Lima, abril 2020 (espanhol)




                 Assim como todos no meio da arte, vimos nossos melhores planos para 2020 evaporar de um dia para o outro. Eram exposições, feiras, aulas, palestras, publicações, lançamentos; tudo cuidadosamente planejado para acontecer ao longo dos próximos meses. Até o confinamento forçado arrastar consigo cronogramas, oportunidades, prioridades, enfim, tudo o que era, até ontem, essencial. Até mesmo a urgência na palavra deadline parece ter sido tragada de um plano simbólico para o de uma literalidade crua e rasteira.

                 Como muitos, temos procurado refletir sobre o papel da arte numa conjuntura extraordinária como esta. Por um lado, é certo que esse período de isolamento prolongado trará uma evidência, mesmo aos mais cínicos detratores da classe artística: o que nós fazemos importa. Por outro lado, é de se supor que os inúmeros livros que serão lidos, os discos escutados e os filmes e séries vistos este ano, estejam entre aqueles que já existiam antes da pandemia. Mas o que acontece com a arte agora?

                De nossos confinamentos, temos também acompanhado com grande entusiasmo o surgimento de diversas iniciativas feitas para manter acesa a chama da produção. Artistas documentando seus ateliês no Instagram, espaços independentes exibindo cursos e seminários em lives, museus disponibilizando seus acervos on-line, feiras disponibilizando portfólios e realizando vendas via redes sociais — ferramentas que já estavam disponíveis antes, é claro, e eram utilizadas com frequência para a circulação de imagens de trabalhos, imagens de artistas, imagens de vernissages. Agora, se avolumam em quantidade e velocidade. Curadores já começaram também a interessar-se por “arte feita na quarentena”, e instituições de pequeno e grande porte foram rápidas em anunciar incentivos extraordinários a projetos relevantes produzidos “agora”.

                Tais esforços são realmente louváveis, e mostram a vitalidade de um meio artístico que está buscando reinventar-se, apesar de uma de suas principais ferramentas históricas — a exposição — ter sido temporariamente inviabilizada. No entanto, cabe perguntar o quanto desse esforço é orgânico e corresponde, de fato, a demandas reais dos produtores e do seu público em quarentena. E o quanto, por oposição, é a tentativa de transpor para a segurança de um espaço virtual um sistema especulativo e excessivo, e que acredita estar ao abrigo de qualquer tipo de crise.

                É justamente em tempos como este que os pontos cegos dos sistemas “normais” se deixam ver com maior nitidez. Assim como a quemservem e como servem. Enquanto algumas dessas iniciativas on-linevisam a criação de redes de apoio financeiro aos artistas — que foram dos primeiros a sentir os efeitos econômicos da crise — outras reproduzem os mesmos modelos e práticas que já precarizavam os produtores antes da pandemia. Entre estas estão o trabalho muitas vezes não remunerado, o estímulo à competição pelas escassas possibilidades de financiamento e vendas, e o uso irrestrito de suas imagens como capital simbólico (e por que não, financeiro). 

                Como se sabe, a ideia de oferecer “visibilidade” em troca da exposição de trabalhos de arte (ou de suas imagens) nada tem de novo. Exceto, talvez, seu novo suporte virtual, desmaterializado. Ora, na tentativa de obter alguma legitimação em um meio que exige credenciais institucionais, artistas sempre trabalharam de graça, financiando sua produção com fontes alternativas de renda. Isso na esperança de que essa visibilidade gere novas oportunidades de trabalho, e assim sucessivamente, até que, finalmente, seja possível pagar as contas. Mas isso é ilusório, pois o circuito da arte, tal como existiu até agora, dependeu precisamente dessa desvinculação entre retorno simbólico e retorno financeiro como contrapartida ao trabalho artístico. O dinheiro circulava, mas nunca chegava de fato ao produtor.

                Hoje como ontem pede-se ao artista que produza as imagens de um mundo por vir, deixando de lado a questão de saber como ele está vivendo seu presente. Por trás dessa demanda está um ideário já antigo, vindo do Romantismo, que faz do artista um outsider e do próprio trabalho artístico algo excepcional. Os verdadeiros artistas seriam, assim, aqueles que trabalham de forma autônoma, pelo puro prazer (ou necessidade) de se expressar. Por mais anacrônica que seja, essa separação entre a realização pessoal e remuneração financeira é mantida hoje de forma estratégica. E tem como efeito prático situar o produtor na vanguarda de um capitalismo eminentemente simbólico, cujo maior ativo é a “criatividade”. Ou seja, o poder de inventar soluções, mesmo diante das maiores adversidades produzidas pelo próprio sistema. Não à toa, as motivações que antes eram atribuídas quase exclusivamente aos artistas se tornam componentes centrais dos discursos empresarial e publicitário.

                A presente crise só torna mais evidente a perversidade dessa situação: o artista opera como um fornecedor de “autenticidade” para uma engrenagem articulada por agentes intermediários, agregando com suas obras “valor de prestígio” às instituições-marcas que as exibem. E continua a fazer exatamente isso quando esse valor produzido, exposto e claro, vendido, é sua própria personalidade: artista jovem, artista maldito, artista engajado, artista periférico, artista queer. E agora, artista confinado, cujo ritmo de produção, sem os “entraves” do mundo exterior, pode ser até mesmo beneficiado pela quarentena.

                As chamadas que circulam na internet esses dias dão a entender que a criação desse “imaginário da crise” é urgente. Não é. Que temos poucos dias para produzir uma obra relevante, pungente e reveladora. Não temos. Artistas não têm a obrigação (ou os meios) de dar conta dessa demanda por “sentido” de uma sociedade à deriva, que perdeu a capacidade de projetar-se no futuro. Se há uma “classe” que está em medida de dar uma resposta efetiva à crise, esta é a dos cientistas, médicos, enfermeiros, lixeiros, atendentes, caixas de supermercado, e sim, políticos; todos que estão (ou deveriam estar) nas linhas de frente da luta contra a pandemia.

                Como todos os trabalhadores de serviços “não-essenciais”, o melhor que fazemos agora é ficar em casa. Não precisamos deixar de ser artistas; trabalhar pode ser uma forma de nos mantermos sãos e ativos em meios a esse "entre ato" de duração indefinida. Mas podemos também aproveitar a interrupção forçada das atividades para refletir sobre nossa suposta “normalidade”. E formular questões simples sobre práticas naturalizadas no passado, como: era mesmo necessário produzir tanto? Expor tanto? Expor-se tanto? Mas também para nos projetarmos no futuro, nessa já tão antecipada “retomada”: ao final da quarentena, o quanto essas dinâmicas de visibilidade terão corroborado com uma capitalização da tragédia que vivemos? E, neste caso, a quem terão beneficiado? E a quem não terão?

                E “agora”, o que é que precisamos de verdade? De mais views? De likes? De thumbs up? Por favor, apenas parem.

                Artistas, parem de estetizar a quarentena e a si mesmos. Tal demanda corresponde efetivamente a seu desejo de expressão ou à necessidade do meio de seguir circulando seu capital nas redes sociais? Por que não, pelo contrário, parar de produzir por um tempo? Abraçar essa mentalidade competitiva que recompensa a produtividade como única moeda de troca na crise só nos fará mal. Já estamos sozinhos; não é hora de competir por um lugar ao sol. Importa, pelo contrário, criar redes de proteção e de auxílio. De trocas de serviços e trabalhos. De escuta. 

                Curadores, parem de selecionar obras sobre a quarentena. Tal demanda não fará aumentar a angústia dos artistas que, temendo a invisibilidade profissional, terão de criar obras que se adaptem sem fricção ao "novo" modo de circulação e exposição, exclusivamente virtual? Por que não, pelo contrário, fazer exposições virtuais com trabalhos já existentes? Estes não faltam. Seguir alimentando essa lógica de produtividade e auto-exposição, como se a crise fosse apenas uma “ocasião para criar”, serve para aprofundar um processo já antigo de alienação do artista, mas agora com graves consequências psicológicas.

                Instituições, parem de premiar artistas que trabalhem na quarentena. Tal demanda não estimulará a criação de obras de qualidade duvidosa, geradas unicamente pelo medo de se verem privados dos parcos recursos destinados a esses “editais emergenciais”? Por que não, pelo contrário, comprar obras dos artistas ou doar diretamente seu dinheiro? Sem esquecer, é claro, de garantir nesse período a remuneração dos demais profissionais da arte que trabalham nas exposições, a exemplo dos produtores, educadores e montadores. Prêmios agora não fazem mais do que espetacularizar o espírito “winner-takes-all” do circuito da arte, que faz com que pouquíssimos ganhem muito e a maioria esmagadora ganhe muito pouco ou menos que nada.

                E jornalistas, parem de escrever matérias sobre obras-primas produzidas na quarentena. Tal demanda não contribui para o aprofundamento da mística do artista como indivíduo excêntrico, excepcional e autônomo — impermeável às condições sociais? Por que não escrever sobre como artistas no Brasil sempre produziram em condições adversas, mesmo antes da pandemia? Shakespeare, de fato, criou obras-primas durante a peste bubônica, mas ele tinha poderosos mecenas que lhe permitiram viver confortavelmente enquanto os teatros estavam fechados. Não é o nosso caso.